sábado, 20 de março de 2010

7 - Por que respeitar os acionistas é praticar responsabilidade social?

Maio de 2008

Em 1916, alegando objetivos sociais, Henry Ford decidiu não distribuir parte dos dividendos esperados pelos acionistas da organização que dirigia, direcionando-os para investimentos em capacidade de produção, aumento de salários e fundo de reserva para uma redução esperada nas receitas, em função do corte nos preços de automóveis produzidos. Tal decisão conduziu seu autor a um embate no âmbito do Poder Judiciário norte-americano e o julgamento do caso Dodge versus Ford, em 1919, constitui um dos marcos sobre as discussões relativas à ética e à responsabilidade social. A Suprema Corte de Michigan foi favorável aos Dodges, com a justificativa de que a corporação existe para beneficiar os acionistas, cabendo aos dirigentes corporativos a decisão sobre como alcançar tal propósito.

A supremacia dos acionistas teve no economista Milton Friedman, laureado com o Prêmio Nobel de Economia em 1976, um dos seus mais contundentes defensores. No conhecido artigo denominado The social responsibility of business is to increase its profits (1970), Friedman contesta a responsabilidade social ampliada, argumentando que a única responsabilidade social da empresa consiste em utilizar seus recursos para maximizar o lucro em benefício dos acionistas, mantendo-se fiel às regras do jogo: não fraudar os acionistas e credores e respeitar os preceitos da concorrência leal.

Mas a idéia da supremacia dos acionistas tem sido objeto de respeitáveis ataques ao longo do tempo, em grande medida, em função do crescimento das corporações e do seu poder. Um exemplo relevante que aqueceu o debate público sobre a responsabilidade social corporativa ocorreu em 1953: o caso A. P. Smith Manufacturing versus Barlow. A Suprema Corte de New Jersey foi favorável à doação de recursos da companhia à Universidade de Princeton, acatando a tese de que uma corporação pode buscar o desenvolvimento social; posteriormente, a filantropia corporativa foi estabelecida em base legal.

A partir do conceito de filantropia corporativa, as discussões sobre ética e responsabilidade social passaram a encampar a defesa de medidas socialmente orientadas, a exemplo da desativação de processos produtivos que causem prejuízos à sociedade. Defensores da ética e da responsabilidade social corporativa passaram a argumentar que, se filantropia era uma ação legítima da companhia, outras ações orientadas para objetivos sociais, em detrimento do retorno financeiro dos acionistas, seriam igualmente válidas. Firmava-se, portanto, de forma inexorável, o debate sobre responsabilidade social nos meios empresariais e acadêmicos, inicialmente nos EUA e, ao final dos anos 60, no continente europeu.

A defesa de uma visão mais abrangente de responsabilidade social tem sido feita por pensadores de peso; um dos ícones dessa corrente de pensamento é o professor Max B. E. Clarkson. No artigo clássico A stakeholder framework for analyzing and evaluating corporate performance (1995), Clarkson afirma que os gestores não podem mais priorizar a maximização de retornos para os acionistas, com o sacrifício de públicos relevantes (stakeholders) primários, os quais abrangem acionistas e outros investidores, empregados, clientes e fornecedores, em conjunto com o grupo stakeholder público (governos e comunidades), que oferece infra-estruturas e mercados, cujas leis e regulamentações devem ser obedecidas e cujas taxas e outras obrigações devem ser pagas. Segundo Clarkson, os gestores devem cumprir as responsabilidades com os grupos em questão, resolvendo conflitos na distribuição da riqueza e do valor criados pela empresa por meio de julgamento e escolhas éticas, que existem mesmo quando quem decide não tem consciência sobre esses aspectos inerentes ao seu trabalho.

Pode-se afirmar que a polêmica histórica sobre ética e responsabilidade social corporativa permeia o embate clássico entre os dois modelos de governança corporativa mais estudados pelos centros de ensino ao redor do mundo: o modelo financeiro, cujo principal foco é garantir o retorno financeiro dos proprietários, e o modelo dos públicos estratégicos ou relevantes (stakeholders), o qual defende o equilíbrio no atendimento a interesses dos stakeholders primários. A necessidade de compatibilizar os dois modelos citados também tem sido objeto de análises e é ilustrada pelo artigo Value maximization, stakeholder theory, and the corporate objective function (2001), do professor Michael C. Jensen. Ao preconizar um modelo esclarecido dos stakeholders, Jensen reconhece que a criação de valor econômico deve ser a meta alcançada a partir do reconhecimento dos interesses de stakeholders importantes; empresas, no fundo, devem decidir sobre trocas (tradeoffs) e concessões relevantes a fazer, mas sem perder de vista o retorno econômico dos proprietários (placar a ser alcançado) e os caminhos de persegui-lo (estratégia).

As reflexões anteriores são importantes para contextualizar a diferença de ponto de vista entre os defensores de uma governança mais focada nos proprietários (aqueles que arcam, em última instância, com as perdas de uma empresa, se ela não for bem sucedida em suas operações), aqueles que defendem uma governança mais distributiva em relação aos vários stakeholders primários que dependem dos resultados de uma empresa (e que têm grande poder para afetar operações empresariais, a melhor ou a pior), e aqueles que defendem uma terceira via de compatibilização. Ressalta-se que tais reflexões não contemplam os impactos sociais mais amplos da falta de responsabilidade ou de compromisso com os acionistas de uma empresa.

Retornando à pergunta do título deste artigo, lembramos que o respeito aos acionistas controladores e não controladores é fundamental para o fortalecimento dos mercados de capitais e dos países. Relembremos aqui as palavras dos professores Marina Mitiyo Yamamoto e José Estevam de Almeida Prado, no artigo Governança e o valor das empresas: o respeito dos acionistas é um dever moral das companhias que captam recursos do público (2003): “é consenso entre os agentes que a governança corporativa é muito importante para a credibilidade e o crescimento econômico das empresas e dos países, independentemente do modelo a ser adotado. Percebe-se, hoje, que as falhas de gestão de uma companhia, além de vultosos prejuízos que podem causar aos acionistas, podem colocar em risco a credibilidade do mercado como um todo, com reflexos imprevisíveis sobre o nível de atividade econômica em geral”. Em síntese: respeitar os acionistas é ser socialmente responsável.

Enfatizamos, ainda, que o conceito de sustentabilidade, que emerge desde 1987 do famoso relatório Nosso futuro Comum (ou Relatório Brundtland), iniciativa da Organização das Nações Unidades - ONU -, preconiza a necessidade de as organizações serem saudáveis nas vertentes econômica, social e ambiental, criando valor sem comprometer as potencialidades das gerações futuras. Respeitar os acionistas nos parece consistente com esse conceito, que perpassa a governança das empresas sérias.

MMB - Publicado na Revista RI

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