sábado, 20 de março de 2010

20 - Quais virtudes não podem faltar nas empresas familiares em crescimento?

Junho de 2009



As empresas familiares são muito importantes para a economia nacional e para a geração de riqueza, renda e trabalho. Ao mesmo tempo, essas organizações operam dentro de um contexto cultural formado durante séculos e práticas das Capitanias Hereditárias e do Brasil Imperial ainda se mantêm presentes em várias delas. A empresa familiar com ações em bolsa de valores convive, mais especificamente, com um conflito existencial: por um lado, ela deve ser governada observando requisitos impostos pela legislação, regulamentação e auto-regulação que regem o mercado de capitais; por outro lado, vislumbra-se a posição das famílias controladoras enquanto acionistas majoritárias, com hegemonia sobre o sistema de decisões e com o desafio da tomada de decisões.


Pesquisadores têm se empenhado em entender a empresa familiar, entre os quais destacamos Kelin Gersick e seu grupo de pesquisas, que desenvolveram, no livro De geração para geração: ciclos de vida das empresas familiares (1997), o sistema segundo o qual essa modalidade de empresa se compõe de três subsistemas independentes com certa interpenetração: empresa (gestão), família e propriedade. John Davis, co-autor do sistema citado, menciona a incorporação da dimensão tempo no artigo Uma radiografia da relação empresa + família + propriedade. (2003), já que: 1. a empresa é lançada, expande-se e alcança a maturidade; 2. a família passa pelas etapas de formação organizacional, entrada dos descendentes do fundador, trabalho conjunto e transferência de comando para gestores profissionais; 3. a propriedade passa pelas etapas do proprietário controlador (fundador), sociedade de irmãos (segunda geração) e consórcio de primos (terceira geração). Gersick e seu grupo observam, no artigo Como gerenciar as transições (2003), que os momentos mais desafiadores das empresas familiares são os de transição de cada um dos três subsistemas; nesses pontos de inflexão, são feitas escolhas que modelarão o futuro organizacional e tais momentos se caracterizam pela necessidade das escolhas e pelas elevadas incertezas associadas às mesmas.


Existem exemplos de empresas familiares bem sucedidas no mercado de capitais nacional, as quais buscaram o caminho da profissionalização. Poderíamos comentar algumas no presente artigo, mas optamos por dedicar algumas linhas não a uma empresa, mas a um empresário brasileiro: Ricardo Semler. Autor, há alguns anos, do bem sucedido livro Virando a própria mesa entre outros, Semler publicou em 2006 um novo livro provocador e interessante para quem acredita que as empresas familiares podem mudar sua cultura, com substancial agregação de valor ao patrimônio familiar: Você está louco!: uma vida administrada de outra forma. Se não fosse pelas passagens que mencionaremos abaixo, o livro em questão já valeria a pena pelo fato de relatar a organização do Festival de Woodstock, clássico evento dos anos sessenta que teve lugar nos EUA e que perdurará na lembrança de muitos participantes. O relato é feito na perspectiva de uma pessoa privilegiada em termos informacionais, visto que um dos organizadores do festival é parente de Semler; entretanto, investidores e profissionais de investimento encontrarão em Você está louco vários trechos que poderão despertar seu interesse profissional. O primeiro diz respeito à pioneira experiência empresarial do autor e de alguns colegas na cantina do colégio onde estudavam: parte dos lucros gerados foram aplicados no mercado de ações pelos jovens empreendedores - na verdade, adolescentes -, com retumbante sucesso


Imperdível é a descrição vívida do embate de governança típico da empresa familiar: aos vinte e dois anos, diante da resistência paterna à sua assunção do negócio, Semler, mesmo participando ativamente da Semco, empresa de sua família, decidiu partir para uma experiência empresarial própria, sem praticamente gastar dinheiro com isso. Essa atitude desenvolta, inclusive quanto aos meios altamente profissionais empregados pelo autor, descritos no livro, contrasta com a apatia que pode dominar herdeiros de empresas e teve desdobramentos, entre os quais destacamos a assunção do comando da empresa pelo jovem Semler, mesmo com os receios de seu pai quanto às potencialidades do jovem potencial empreendedor.


Mas Você está louco tem mais. Em um Brasil dos anos oitenta, em que diversas empresas se abrigavam sob as asas benfazejas do Estado brasileiro, antes de uma abertura que viria a destruir muitos empreendimentos (fortalecendo, em contrapartida, outros tantos), Semler e seus executivos perceberam o risco dessa estratégia e foram a campo, inclusive fora do Brasil, buscar novos negócios, produzir crescimento com agregação de valor. A administração Semler mutiplicou o patrimônio familiar, por meio de aquisições bem feitas e de modelos de gestão mais participativos e com maior envolvimento dos empregados e de seus representantes sindicais. Experimentador organizacional, o empresário pôs em cheque modos de pensar tradicionais, flexibilizando processos produtivos e inaugurando relações sindicais em bases inovadoras; isso em um ambiente em que sindicalistas eram, freqüentemente, recepcionados com agressões físicas por parte de empregadores, com auxílio do aparato do Estado.


Você está louco também tem passagens divertidas, como por exemplo quando o autor descreve o seu período de trabalho na Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP), desde o seu ingresso na “ala infantil” da Entidade (expressão cunhada pelo para se referir a si mesmo e a outros empresários igualmente muito jovens, já que a “ala jovem” teria mais de cinqüenta anos), passando pela sua caracterização como “vermelho” por alguns opositores e culminando na forma não ortodoxa como gerenciou os empregados sob sua responsabilidade na Federação. Enfim, com livros publicados em mais de 30 idiomas e em muitos países, Ricardo Semler é sucesso, inclusive em meios acadêmicos sisudos ao redor do mundo. Quanto ao livro Você está louco!: uma vida administrada de outra forma, além de ter um título provocante, trata-se do depoimento de um empresário, que pode ter várias características, menos ser louco, no sentido negativo mais comumente atribuído a essa palavra.


Qual poderia ser a possível contribuição do livro acima citado para uma reflexão sobre o desenvolvimento e a longevidade de empresas familiares? Quais ingredientes parecem relevantes às empresas dessa natureza que perseguem o crescimento?


Acreditamos que o estudo de caso Semler apresenta um mix interessante de empreendedorismo (o empresário nos parece ser um empreendedor nato), estratégia (a percepção do futuro que esperava a empresa familiar se mudanças radicais não fossem feitas, assim como o tratamento do capital humano e dos processos atestam essa premissa) e profissionalismo (o empresário denota responsabilidade e foco na execução da estratégia). Acreditamos, ainda, que esse triângulo de virtudes, também aplicável às empresas não familiares e a ser complementado por políticas e práticas de governança formais adotadas, ainda que não exaustivo, seja muito relevante para as empresas familiares cujos dirigentes busquem crescimento com criação de valor.



MMB - Publicado na Revista RI

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