sábado, 20 de março de 2010

6 - Ética de Maquiavel ou ética de princípios?

Abril de 2008

Considerado por muitos como sendo pai da ciência política, Nicolau Maquiavel (1469-1527) descreveu, em sua famosa obra O príncipe, diretrizes a serem observadas por dirigentes políticos de sua época, cujo contexto era o das monarquias absolutistas e principados. Quando cotejadas com o modus operandi presente de diversos líderes políticos, em distintos países e regiões, tais diretrizes se mostram pautadas pela atualidade.

Os pressupostos da ética de resultados de Maquiavel não qualificam seu propositor como um pensador maquiavélico, no sentido negativo freqüentemente atribuído ao seu pensamento. Maquiavel não preconizou ao líder fazer o mal, mas, sim, fazer o que necessita ser feito, inclusive o que é considerado mau, para que sejam alcançados os objetivos desejados. O foco de O príncipe é o objetivo e é nesse ponto que reside o grande perigo da ética de resultados, a qual pode ser absorvida tanto por líderes com objetivos mais elevados, como, por exemplo, a busca do crescimento, da evolução e do bem-estar de seus liderados, quanto por aqueles focados em interesses como a manutenção do poder pelo poder e a dominação sobre um grupo para benefício próprio. Considerando o contexto conturbado e instável em que viveu Maquiavel, parece razoável supor que a manutenção do poder por príncipes foi considerada um objetivo lícito e válido pelo pensador, devendo seu trabalho ser devidamente contextualizado.

A visão de liderança preconizada por Maquiavel nos capítulos XV a XXV de O príncipe, os quais concentram a essência do pensamento do autor, pode ser sintetizada em um conjunto de 12 atributos essenciais a serem observados pelos dirigentes políticos que desejarem preservar seu poder. Segundo Maquiavel, e em linhas gerais, bons príncipes: 1. são capazes de dosar defeitos e virtudes para o alcance de resultados, sendo maus, caso necessário, em prol de um objetivo maior; 2. são prudentes quanto às finanças e atentos contra o perigo da ostentação de riqueza; 3. não almejam ser amados, mas, respeitados; 4. aplicam punições exemplares para desencorajar ataques à sua posição; 5. priorizam o objetivo maior de manutenção do Estado, atuando conforme necessário em prol da sustentação do poder, porém, preservando sua boa imagem; 6. têm a habilidade requerida para transitar entre os poderosos e o povo; 7. evitam o ódio e o desprezo do povo, que os tornam vulneráveis; 8. equacionam seus recursos ofensivos (os exércitos) e defensivos (as barreiras, das quais a melhor é o conjunto dos seus defensores: o povo); 9. equacionam parcerias externas, escolhendo os aliados que melhor atendam aos interesses em jogo e posicionando-se claramente a favor dos mesmos; concomitantemente, administram as parcerias internas, sendo o povo o principal parceiro, que deve ser suprido em necessidades tangíveis e intangíveis; 10. atraem e retêm bons assessores, com base na premissa da confiança, evitando habilmente aduladores; 11. sabem adequar-se às necessidades do momento político, sendo flexíveis aos requisitos e condições ambientais; 12. são proativos, planejando e implementando eles mesmos os meios mais eficazes de defesa da sua posição e construindo seus próprios destinos.

Os 12 atributos relacionados reforçam a consideração de que o maquiavelismo não apenas não é focado no que é considerado mau, sendo orientado para resultados, mas também agrega quesitos aplicáveis ou desejáveis à condução dos negócios do Estado, das empresas e das organizações em geral. Considere-se, por exemplo, a prudência no que se refere às finanças (segundo atributo). A liberalidade está, segundo Maquiavel, associada à ostentação, cuja manutenção exige cobrança adicional de impostos, fiscalização mais dura e ações para obter recursos financeiros adicionais. Tais exigências empobrecem o povo e tornam o príncipe odioso perante o mesmo. E, ao conferir privilégios a alguns poucos em detrimento de muitos, o príncipe se torna mais vulnerável. Ao mesmo tempo, a parcimônia é um atributo que permite reinar, realizar empreendimentos sem penalizar o povo e defender-se em situação de guerra. Contemple-se, adicionalmente, a proatividade (último atributo). Para Maquiavel, muitos acreditam que as coisas do mundo são governadas pelo destino e por Deus, não podendo ser mudadas pelos homens. Entretanto, o autor argumenta que a sorte pode ser responsável pela metade das nossas ações, decorrendo o resto do livre arbítrio. Muitos príncipes poderiam ter evitado dissabores e perda de poder, se tivessem assumido a responsabilidade pela proteção de seus próprios interesses. Maquiavel defende, no fundo, a estratégia.

Os dois exemplos acima podem ser trazidos ao contexto das empresas, cujos dirigentes devem atentar para questões como a gestão inteligente dos recursos financeiros, o estabelecimento de sistemas de recompensas justos - especialmente no que se refere aos privilégios outorgados a determinados públicos -, o desenho e a implantação da estratégia corporativa e a proteção de interesses dos principais públicos relevantes (stakeholders). Mas o reconhecimento de que o trabalho de Maquiavel pode ensejar reflexões úteis aos dirigentes das empresas não implica a defesa da transposição automática de todos os pressupostos da ética de resultados ao ambiente de condução dos negócios organizacionais, que corresponde ao ambiente de governança corporativa. Afinal, no objetivo a ser atingido reside o grande perigo da ética de resultados (uma vez mais ponderamos).

Nas empresas, o atingimento dos objetivos desejados por aqueles que nelas investem alguma modalidade de ativo ou expectativas depende, em grande medida, do conjunto de pressupostos resultantes da reflexão dos agentes corporativos, o qual corresponde à ética que define, em última instância, o modus operandi e o tom da atuação dos dirigentes e demais quadros organizacionais. Empresas, especialmente aquelas com suas ações negociadas em bolsa de valores, têm sido instadas a estabelecer princípios éticos e códigos de ética, aderindo, portanto, formalmente, a uma ética normativa ou de princípios e, não, a uma ética de resultados. Tal ética de princípios, que determina regras do jogo - precederia o estabelecimento dos objetivos organizacionais, alinhados com os objetivos dos investidores dos mercados de capitais.

A pressão pela adoção de princípios éticos, identificada no âmbito dos mercados e, eventualmente, expressa por meio de regras formais, a exemplo do Sarbanes-Oxley Act, nos EUA, criado após vários escândalos corporativos como a Enron e a Worldcom, parece decorrer da necessidade de aprimoramento das regras do jogo e de reduzir custos de transação, especialmente aqueles internalizados pelas companhias. Assim, a ética de princípios precede a ética de resultados, ainda que isso possa ocorrer em várias organizações mais em função de razões pragmáticas - o receio da desvalorização patrimonial e da perda de dinheiro por investidores - do que em função da defesa dos princípios éticos per se. Ao mesmo tempo, a possibilidade de interiorização ou introjeção de bons princípios pelas pessoas ao longo do tempo não deve ser desprezada. Portanto, sem deixar de reconhecer o mérito do trabalho de Maquiavel e aspectos muito interessantes e válidos em sua ética de resultados, acreditamos que os investidores (que são, diante de suas telas de computador, seres humanos) e as organizações, empresariais e não empresariais, caminham para maior valorização de uma ética de princípios, a qual agrega virtudes dignificantes. Estarão as empresas, as organizações em geral e os mercados financeiros se tornando mais espiritualizados? O tempo dirá.


MMB - Publicado na Revista RI

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