sábado, 20 de março de 2010

14 - Crise, governança e sustentabilidade: a ética pode ajudar?

Dezembro de 2008

A ética pode ser definida como sendo um conjunto de preceitos sobre o que é moralmente certo e errado, mas isso não é tudo: ética é a reflexão sobre a validade de uma linha de conduta, implicando regras - ou regras do jogo - que não se impõem de fora para dentro, mas que emergem do indivíduo ou do grupo de indivíduos que com elas se identificam. Seres humanos, ao contrário de outros integrantes do reino animal, têm a possibilidade, ainda que muitas vezes limitada por fatores sobre os quais não existe poder de mudança, de fazer escolhas, ora individuais, ora coletivas. Escolhas éticas podem ser afetadas pela cultura, por regras que vêm de fora do indivíduo, mas permanecem sendo escolhas. Qual é o objetivo da ética? A felicidade, a qual pode ser definida, por sua vez, como um estado de bem estar ou mesmo de plenitude no qual o ser humano se sente íntegro e em harmonia com os seus valores e ações. Assim, o indivíduo busca ser ético por que quer ser feliz; adicionalmente, ser ético implica atenção, cuidado com o semelhante, até por que isso significa ter cuidado consigo. Aos interessados em aprofundar as considerações anteriores, recomendamos o livro Ética, verdade e felicidade, de autoria do professor Roberto Patrus.Mundim (1999), estudioso e pesquisador de um tema que se torna, cada vez mais importante na realidade prática da vida humana, a ética.


As motivações dos indivíduos podem ser inúmeras e infelizmente, algumas pessoas optam, usando seu livre arbítrio, por condutas que podem até emergir de sua reflexão e conclusões quanto à validade no mundo real; porém, ignorando o direito de outras pessoas serem respeitadas e felizes. Mesmo assim, acreditamos que parte das pessoas é motivada pela busca da felicidade nos moldes acima comentados, condizentes com a premissa da paz interna. Ao mesmo tempo – e aqui a filosofia se encontra com a economia -, as pessoas trafegam entre várias estruturas de coordenação de atividades econômicas: o Estado, as empresas (ou firmas, como costumam preferir muitos economistas), os mercados, as associações, as redes e as comunidades entre outras. Essas estruturas ou mecanismos de governança têm papéis a desempenhar no contexto capitalista, visando diminuir custos de transação e tornar a economia mais eficiente. Ponto de atenção: as estruturas citadas podem ser muito interessantes e relevantes para a satisfação de necessidades humanas, especialmente no plano material, mas elas não estão focadas na felicidade; sua arquitetura não foi concebida para esse fim.


Consideramos, por exemplo, o Estado, que cria regras do jogo e que, teoricamente, assegura seu cumprimento (enforcement); ele também oferece alguns serviços à sociedade, de forma seletiva; entretanto, as organizações do Estado são imperfeitas, podendo favorecer interesses específicos, em detrimento da coletividade, além de operar de forma ineficaz. Já as empresas produzem bens e serviços (seu business) e buscam retorno econômico; ocorre que as empresas podem abrigar condutas autoritárias e oportunistas, além de ser injustas com clientes, empregados e outros stakeholders. Consideremos, ainda, os mercados, ambientes de encontro entre pessoas que compram e vendem produtos e serviços: eles propiciam oportunidades de intercâmbio e de satisfação de necessidades. Ao mesmo tempo, os mercados necessitam de regras de operação e conduta, formais ou informais - aquelas que melhor funcionarem; desregulamentação pode provocar sérios problemas, conforme o mercado que se considera. Muito mais poderíamos dizer sobre essas e outras estruturas de governança da economia, como as associações, criadas para defender interesses classistas, as redes entre organizações e pessoas, estabelecidas para fins econômicos específicos, e as comunidades, conjuntos de pessoas conectadas por interesses comuns, eventualmente virtuais.


Entretanto, retornemos às pessoas, com suas necessidades e motivações – como a busca da felicidade - e às estruturas de governança por ela criadas, de forma genérica. Durante muitos anos, especialmente a partir da chamada Revolução Industrial, pessoas e estruturas vêm operando com eficiência na dilapidação do meio ambiente, considerando os recursos naturais como sendo de reposição infinita. O desenvolvimento econômico e a expansão da capacidade produtiva têm conduzido o Planeta Terra, ao longo do tempo, a uma degradação ambiental sem precedentes, com forte impacto na saúde e na qualidade de vida. Há pelo menos 21 anos, desde a publicação do Relatório Brundland (Our common future), em 1987, foi feito um alerta aos países, via Organização das Nações Unidas (ONU): urge repensar um modelo de desenvolvimento baseado apenas na busca de crescimento e de retornos financeiros, segundo uma lógica exclusivamente econômica. Um novo modelo, baseado no conceito de desenvolvimento sustentável, se torna imperioso, e a sustentabilidade nas vertentes econômica, social e ambiental se torna uma questão séria para os seres humanos, visto que as gerações presentes e futuras estão sob risco de infortúnios ambientais de grande amplitude.


Feitos esses breves comentários, consideremos agora a crise financeira global, que pode ser analisada sob múltiplos ângulos, e sobre a qual também podemos fazer uma avaliação, ainda que muito superficial, sob o prisma das estruturas de governança citadas, as quais falharam, de diversas maneiras. Governos acreditaram na capacidade de os mercados terem, per se, a capacidade de prevenir ou resolver os problemas advindos de condutas inadequadas. Instituições financeiras administraram de forma equivocada seus riscos de crédito, permitindo e mesmo estimulando muitas pessoas à contratação de empréstimos incompatíveis com sua capacidade de pagamento (e alguns dirigentes, mesmo tendo conduzido operações deficitárias, receberam por isso gratificações de grande monta). Empresas produtoras de bens e serviços administraram de forma equivocada seus riscos, contratando produtos derivativos com base em previsões imprudentes de preços de ativos. Agências de rating aparentemente não apontaram problemas. Nesse contexto, os governos se vêem diante da opção de intervir fortemente no jogo capitalista, visando evitar recessão e sob risco de criar estagflação. John Maynard Keynes desponta reluzente na agenda capitalista, para desespero dos defensores de uma ideologia liberal, atingida em alguns de seus pressupostos, já que as estruturas de governança e os mercados, operados por seres humanos, simplesmente falham, conforme demonstra a realidade.


A crise financeira global poderia ter sido evitada? Talvez, se os seus sinais tivessem tido uma leitura ideologicamente isenta, e se as regras do jogo tivessem sido mudadas a tempo. Uma eventual crise global no meio ambiente, de grandes proporções, poderia ser evitada? Sob o prisma técnico, não temos qualificação para dizer se ela virá e, caso positivo, se será possível preveni-la. Mesmo assim, acreditamos que a ética focada no cuidado com o ser humano pode contribuir para alterar o jogo capitalista e reduzir seus riscos. Se por um lado, as estruturas de governança, mesmo contribuindo para satisfazer necessidades humanas, não são focadas na felicidade, por outro lado, o aprimoramento dessas estruturas, no sentido de sua responsabilidade (e essa será grande avanço!), está nas mãos das pessoas, visto que não existe ninguém mais dentro dessas estruturas, além das pessoas, com capacidade para fazer acontecer. O grande desafio individual e coletivo é, mais do que adotar, praticar concretamente, no dia-a-dia, uma ética que possa mitigar grandes crises, econômicas, ambientais ou de outra natureza; lembrando que a vida não é fácil, não existindo soluções fáceis.




MMB - Publicado na Revista RI

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