sábado, 24 de julho de 2010

27 - Governança corporativa: como a cultura influencia as relações de poder?

Janeiro de 2010

Governança é um tema multidisciplinar e, frequentemente, emprega-se substancial esforço acadêmico discutindo ora o modelo financeiro (a empresa deve ser governada em prol dos seus proprietários), ora o modelo dos públicos estratégicos, relevantes ou stakeholders (a empresa deve ser governada em prol de um conjunto de participantes, com interesses distintos em decisões e resultados, tais como proprietários, clientes, fornecedores e empregados entre outros com potencial de provocar danos sérios à organização, se seus interesses não forem considerados). A nosso ver, a tendência dos mercados é de convergência na direção da segunda perspectiva, que é aquela mais conectada com a responsabilidade social e com a sustentabilidade, sem perder de vista a premissa de que empresas necessitam lucrar e remunerar seus proprietários.

Ao mesmo tempo, outras visões muito instigantes sobre o tema governança, interligadas com os modelos anteriores e entre si, também podem ser exploradas e estudá-las corresponde a iluminar ângulos específicos do constructo complexo que é o tema em questão. Assim, a governança pode ser estudada sob variadas luzes: cultura, legislação, regulamentação, poder, comunicação, riscos, arquitetura organizacional, estratégia, informação, finanças e muitas outras, incluindo na lista a psicologia. Em extenso artigo denominado governance: its scope, concerns and theories, de 1997, Shann Turnbull explora, já, algumas visões distintivas, entre as quais, a cultural, a do poder e a informacional; nestas breves linhas, discorreremos sobre as duas primeiras e o elo entre ambas; em outras oportunidades, contemplaremos outras abordagens.

O que é cultura? Sob o prisma da economia institucional, é o conjunto de regras do jogo informais criadas pelas diversas sociedades como forma de ampliar a confiança entre os agentes e de reduzir custos de transação. Tal definição emerge dos trabalhos de Douglass North, com destaque para o livro denominado Institutions, institutional change and economic performance – political economy of institutions and decisions, de 1990, no qual o autor consolida o conceito de regras do jogo e explica que a diferença entre o desenvolvimento de diferentes regiões se dá em função das regras e de seu cumprimento (enforcement). Segundo North, as regras do jogo informais são ainda mais importantes do que as formais, ou seja, o que não está escrito é mais relevante do que o que está. Há quem duvide dessa premissa?

Na perspectiva cultural, a análise da governança considera o contexto que permeia as transações intra e interfirmas, abrangendo aspectos que impactam o modo como as transações são feitas e a influência de aspectos como religião, comprometimento com empregados e nível de confiança entre agentes econômicos, na formação de alianças estratégicas e na realização de negócios em geral. Note-se que a cultura perpassa os modelos financeiro e dos stakeholders, conforme as regras do jogo informais que vicejam nos diferentes mercados; na Alemanha e no Japão, por exemplo, maiores preocupações com empregados influiriam fortemente na configuração do governo das empresas.

Ao analisar as modificações feitas na Lei das Sociedades Anônimas (n. 6.404, de 15/12/1976) por meio do instrumento conhecido como Nova Lei das SA´s (n. 10.053, de 31/10/2001), a especialista Érica Gorga, baseada em estudos de North, demonstra, em robusto paper denominado Does culture matter for corporate governance? A case study of Brazil, de 2003, como as condições culturais específicas do contexto nacional influiram na revisão legal, evitando que fossem introduzidas modificações que produzissem maior impacto no mercado de capitais nacional.

Passemos agora à visão do poder, que trata do poder de atuação de indivíduos ou grupos em âmbito organizacional. A perspectiva do poder também perpassa os modelos financeiro e dos stakeholders, sendo que no primeiro caso, o foco está no conflito de agência, na contenda entre quem detem a propriedade e quem efetivamente governa a empresa. Quem tem o poder efetivo? Já no modelo dos stakeholders, a disputa por poder e resultados também é grande: stakeholders podem ter conhecimento e desejo de participar das decisões, mas necessitam de poder para isso.

Como o poder pode ser utilizado ou mesmo manipulado nas empresas, especialmente nas sociedades por ações com estruturas de governança aparentemente robustas, como os conselhos de administração? Conforme observa Turnbull, há mecanismos como agendas de reuniões, regras de votação, procedimentos e disposições corporativas, os quais podem afetar relações de poder entre conselheiros e administradores. Ademais, conselheiros podem ter seu poder de ação limitado, a menos que recebam apoio dos proprietários (e nas empresas com acionistas controladores, seu desejo pode ser a variável preponderante). O professor menciona a relevância da informação como elemento de controle na abordagem do poder, observando que parte dos dados efetivamente relevantes não chega aos conselheiros.

A questão do poder é tão significativa que a legislação, eventualmente, introduz mecanismos ex ante e ex post de tratamento de conflitos; no Brasil, um instrumento de distribuição de poder corporativo ex ante entre acionistas, que se destaca, são os acordos de acionistas. Já as câmaras de arbitragem, cuja operação é ex post, são instâncias especiais previamente definidas, destinadas à resolução de disputas de poder sem a necessidade de interferência do Estado, cujo enforcement é insatisfatório. A adoção da arbitragem confere agilidade à resolução de conflitos, os quais de outra forma tramitariam durante anos em instâncias judiciais.

As perspectivas cultural e do poder oferecem oportunidades de avaliar a governança de empresas em diferentes países e regiões e permeiam estudos comparativos sobre países como os EUA, o Reino Unido, a Alemanha, o Japão, a França, a Itália, o Brasil e outros. Essas duas perspectivas estão entrelaçadas, haja vista que o poder efetivo será conferido, na prática, segundo as crenças e regras do jogo informais que caracterizam as relações entre as pessoas: a menos que acreditemos que o nosso risco se reduzirá, provavelmente nos recusaremos a dividir poder. Adicionalmente, ainda que a divisão de poder possa ser sistemicamente benéfica, em nível pessoal, ela também pode nos desagradar profundamente; afinal, poder é poder e quem gosta de perder poder? Não parece esta uma crença válida?

Finalizamos observando que as regras do jogo informais podem evoluir, de maneira a reduzir conflitos de governança nas empresas, especialmente por meio de um processo educativo abrangendo famílias, escolas e as organizações, de maneira geral, e lembrando que mudanças em regras formais podem, sem dúvida, ajudar, quando são factíveis. Ao mesmo tempo, também lembramos que processos de reeducação das pessoas, de mudança cultural, costumam ser demorados, exigindo anos e anos para que mudanças consistentes se efetivem na prática; assim, o trabalho dos educadores e daqueles que buscam realizar ideais deve ser paciente, muito paciente.

MMB - Publicado na Revista RI