sábado, 20 de março de 2010

3 - Mercado com foco de curto prazo ajuda a empreender?

Dezembro de 2007



Nascida no estado do Texas (EUA), Mary Kay Ash foi uma mulher ímpar, especialmente quando se considera a mentalidade vigente nos anos sessenta, período em que ela pôde buscar a realização do seu sonho, após educar três filhos e trabalhar durante 25 anos com vendas: criar uma empresa que operasse de acordo com as suas convicções pessoais. A empresa criada por Mary nasceu de economias familiares, incluindo o dinheiro que a empresária tinha acumulado ao longo do tempo para desfrutar sua aposentadoria. Se fracassasse, ela teria que trabalhar até o final de seus dias para sobreviver (Milagres que acontecem, 1994).



O início não foi fácil. Mary perdeu o marido subitamente, pouco antes de a empresa entrar em operação, e teve que tomar uma decisão crucial: seguir ou não adiante. Desaconselhada a prosseguir pelos especialistas que a assessoraram após o falecimento do marido, mas com o forte apoio dos filhos, ainda muito jovens, a empresária foi adiante. Aquela seria a única chance que teria de realizar seu sonho. Assim, no dia 13 de setembro de 1963, a empresa de Mary foi inaugurada. Além de si própria, com quem ela contava, inicialmente? Com o filho de vinte anos, Richard, seu principal executivo financeiro e operacional, bem como com nove colaboradoras por ela preparadas. Alguns meses após o início das operações, Ben, também filho de Mary, deixou um emprego bem remunerado para se reunir à mãe e ao irmão. E, tempos adiante, a terceira filha, Marylyn, reuniu-se à família, tornando-se a primeira diretora da empresa na cidade de Houston.


Que tipo de empresa Mary desejava criar? Após anos de discriminação em empresas tradicionais, apesar de ótimos resultados alcançados, ela almejava implementar um modelo de gestão que respeitasse as mulheres, combinando empreendedorismo, meritocracia (refletida em bônus e premiações sob a forma de jóias e outros bens, pontuando conquistas pessoais), flexibilidade de tempo para criar a família (cara às mulheres), qualidade de produtos, marketing não agressivo (os produtos deveriam ser bons o suficiente para se venderem per se) e apoio. Cada consultora e diretora de sua empresa seria uma microempresária, e a empresa de Mary Kay proveria produtos de qualidade, treinamento e suporte ao desenvolvimento individual. Assim, desde o início, Mary e sua família fizeram clara opção pelo empreendedorismo das mulheres que dele fariam parte e isso incluía uma gestão financeira de baixo risco, baseada na crença capitalista norte-americana cash-and-carry (pagar e levar). A inexistência de dívidas das consultoras com a empresa, em função do pagamento à vista de produtos, não apenas mitigaria o risco financeiro, mas viabilizaria o pagamento de melhores bônus.


A história da empresa de Mary Kay Ash é em exemplo de união familiar, empreendedorismo, modelo de negócio robusto e trabalho persistente que culminou em uma organização que opera em vários continentes, incluindo o Brasil. Adicionalmente, a Mary Kay Ash Charitable Foundation atua coletando telefones celulares descartados, pelos quais obtém recursos utilizados para apoiar o combate ao câncer e à violência doméstica. E mais poderia ser dito sobre Mary Kay e sua empresa, criada a partir de um sonho, mas gostaríamos de nos concentrar em dois eventos particularmente importantes: a abertura de capital em 1968 e sua listagem na Bolsa de Valores, bem como o fechamento de capital e a retirada das ações da Bolsa, decidido em 1985. O que aconteceu?


Mary relata que a decisão de abrir o capital foi tomada visando implementar as melhores técnicas administrativas e gerenciais disponíveis. Com o passar do tempo, percebeu-se que a participação da empresa no mercado tornava-se não uma alavanca, mas um obstáculo ao crescimento empresarial. A empresária tece considerações relativas ao modus operandi do mercado acionário nos EUA. A primeira diz respeito ao foco de curto prazo, à ênfase dos profissionais do mercado em resultados e projeções de lucros de curto prazo. Mary expressa sua perplexidade com as análises elaboradas sobre lucros trimestrais, ou dito de outra forma, com a forma como flutuações negativas de curto prazo normais de negócios são, eventualmente, tratadas como perdas por especialistas financeiros.


A segunda crítica de Mary diz respeito aos gastos, por ela considerados elevados, de manter as obrigações de uma sociedade anônima, ao grande esforço dispendido para informar públicos relevantes como acionistas, profissionais de investimento e o governo entre outros. No caso de sua empresa, esses gastos não agregavam benefícios correspondentes e, sim, uma influência exógena baseada em uma visão de curto prazo não consistente com a estratégia de condução das operações empresariais. Tendo retirado sua empresa da Bolsa de Valores, Mary Kay destaca que não foram alteradas as práticas empresariais com relação às consultoras e diretoras, enfatizando a manutenção do foco no empreendedorismo em negócios independentes.


Voltando à pergunta inicial: visão de curto prazo interessa a quem empreende? As reflexões aqui apresentadas se baseiam nas palavras de Mary Kay Ash. Primeiramente, a percepção é que a empresária criou uma espécie de mercado de capitais próprio integrado por consultoras e diretoras, sócias e micro-empresárias, em um sentido filosófico distinto do legal. O financiamento da empresa-mãe seria aportado, em grande medida, por muitas sócias e microgestoras, com fortes motivações para trabalhar em prol do negócio. Quanto ao mercado de capitais externo, seria um complemento interessante para o atendimento a objetivos válidos durante longo tempo, mas não para sempre. Por isso mesmo, teria sido abandonado após 17 anos, sem prejuízo da trajetória de sucesso da empresa.


Em segundo lugar, a empresa de Mary Kay Ash (aliás, qualquer empresa) somente seria realmente compreendida por meio de análises fundamentalistas aprofundadas e de longo prazo. Essas análises podem ter sido realizadas, mas, aparentemente, não pautaram as demandas dos investidores de forma mais geral, refletidas em posturas e cobranças de curto prazo de profissionais de investimento do mercado de capitais dos EUA. Dessa forma, o mercado de capitais, tão importante ao desenvolvimento das empresas, teria deixado de contribuir para o crescimento dessa empresa em especial (inclusive com o aporte de idéias), onerando-a.


Finalizando, o empreendimento de Mary Kay, ainda que estatisticamente irrelevante para embasar conclusões mais gerais, ilustra a hipótese: empreendedorismo com visão de longo prazo de um acionista e visão de curto prazo dos demais acionistas não combinam. E tal exemplo talvez seja uma ilustração sobre como a cultura que perpassa um mercado de capitais específico (suas regras do jogo não escritas, como o foco de curto prazo) pode dificultar operações empresariais e o crescimento no longo prazo segundo a visão específica de quem empreende.



MMB - Publicado na Revista RI

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