sábado, 20 de março de 2010

19 - Como a cultura do País afeta o governo das empresas?

Maio de 2009


Como a herança cultural brasileira, ou seja, nossa cultura impacta a realidade das sociedades por ações nacionais e sua governança? Acreditamos que a resposta a essa pergunta seja abrangente ao ponto de poder ser estendida, com ajustes, a outras empresas brasileiras com características distintas dessas sociedades. Para ilustrar o ponto, faremos, preliminarmente, breve referência ao pensamento de um importante intelectual brasileiro: o professor Darcy Ribeiro. Nascido em Montes Claros, Minas Gerais, ele foi antropólogo, ensaísta, romancista e político; entre seus livros, destacam-se: Os índios e a civilização (1970), O processo civilizatório (1968), Maíra (1976), Utopia selvagem (1982), Migo (1988), Diários índios (1996) e Confissões (1997). Entretanto, o maior desafio intelectual de Darcy Ribeiro pode ter sido escrever o livro O povo brasileiro (1995). Quando retornou ao Brasil do exílio, Ribeiro pretendia responder a uma pergunta: por que o Brasil ainda não deu certo? Com essa indagação em mente, concebeu um livro sobre a formação do povo brasileiro e as configurações que ele foi adquirindo ao longo do tempo. O arrojado projeto levou anos para ser finalizado, o que ocorreu ao final da vida do autor, vitimado por câncer.


O povo brasileiro inicia-se nos primórdios da descoberta do Brasil, com a chegada dos portugueses em uma terra habitada por povos indígenas. O livro passa pela colonização portuguesa, coordenada a partir de Lisboa durante longo tempo, mostrando o intenso sofrimento desse processo para índios, negros e seus descendentes; poucas portuguesas vieram de Portugal, o que significa que as primeiras mães do povo brasileiro foram de outras etnias(lembrando que poucas portuguesas vieram de Portugal, sendo ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos". O livro aborda a formação do povo e de suas elites, inicialmente, portuguesas, depois luso-brasileiras e, finalmente, brasileiras. Ao mesmo tempo em que demonstra que o Brasil trilhou o caminho da integração cultural entre as várias etnias e da formação de um povo-nação, Ribeiro apresenta sua visão de exacerbado distanciamento social entre “as classes dominantes e as subordinadas, e entre estas e as oprimidas, agravando as oposições para acumular, debaixo da uniformidade étnico cultural e da unidade nacional, tensões dissociativas de caráter traumático”. Ele argumenta que os brasileiros “raramente percebem os profundos abismos sociais que aqui separam os estratos sociais. O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, por que se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos”. Ao mesmo tempo, Ribeiro demonstra acreditar no futuro, ao dizer que “na verdade das coisas, o que somos é a nova Roma. Uma Roma tardia e tropical. O Brasil é a maior das nações neolatinas, pela magnitude populacional, e começa a sê-lo também por sua criatividade artística e cultural. Precisa sê-lo agora no domínio da tecnologia da futura civilização, para se fazer uma potência econômica, de progresso auto-sustentado”.


O que O povo brasileiro tem a ver com a governança das empresas nacionais? Longe de esgotar as questões inerentes ao desenvolvimento do Brasil (tarefa, de resto, impossível a um único livro, por melhor que esse seja), a obra ajuda a compreender uma série de aspectos culturais relacionados com as empresas em nosso País e com seu governo corporativo. A tradição latifundiária e escravocrata nacional, iniciada com as Capitanias Hereditárias por volta de 1530, ainda hoje parece presente em nossa sociedade, o que tem implicações em aspectos como a grande concentração do capital em mãos de poucos, a dificuldade em dividir a propriedade e o poder de decidir, o apego a privilégios e a dificuldade de modificações formais que venham a favorecer mudanças sociais mais profundas. Como esses aspectos se materializam em características organizacionais relevantes? De várias formas; consideremos, por exemplo, a concentração de propriedade nas sociedades por ações, apontada por vários pesquisadores e diversas estatísticas; cremos que ela reflete a ausência de dilema entre deter um pequeno percentual da propriedade de uma grande empresa ou um percentual elevado da propriedade de uma empresa menor. A nós, parece incontestável que muitos empresários brasileiros (possivelmente, a maioria) preferirão a segunda alternativa.


Consideremos também o uso de ações sem direito a voto. A Lei das Sociedades Anônimas (n. 6.404, 15/12/76) estabelece a distinção entre ações ordinárias (dão direito a voto) e preferenciais (dão direito a determinadas preferências) e tal distinção constitui o principal mecanismo de separação entre propriedade e controle nas sociedades por ações, conforme observam Ricardo Leal e Sílvia Mourthé Valadares, no artigo Ownership and control structure of braziliam companies (2002). Antes das modificações introduzidas pela Lei n. 10.303 (31/10/01), ações ordinárias poderiam representar 1/3 do capital social; portanto, com apenas 16,7% do capital total (50% do capital votante + 1 ação), seria possível controlar uma companhia. Com a reforma legal, o limite de ações ordinárias foi ampliado para 50% (artigo 15), mas apenas para as novas aberturas de capital (Lei n. 10.303, artigo 8o). No Brasil, a elevada concentração acionária, associada ao uso intensivo de ações sem direito a voto, cria a supremacia dos acionistas controladores ou majoritários. O esquema é o oposto do modelo de propriedade distribuída, atribuído, em geral, aos mercados anglo-saxões.


Façamos, adicionalmente, uma breve reflexão sobre os conselhos de administração das sociedades por ações. No Brasil, a supremacia dos acionistas controladores ou majoritários citada acima conduz à seguinte realidade: o funcionamento dos conselhos, que tem a possibilidade priorizar o aproveitamento da experiência e qualificação dos seus integrantes, dependerá, em boa medida, da visão do controlador a respeito de como o conselho deve funcionar; se o controlador não permitir que o conselho opere de maneira eficaz, isso muito possivelmente não ocorrerá. Adicionalmente, acreditamos que os resultados da pesquisa Panorama atual da governança corporativa no Brasil, realizada pelo IBGC e BOOZ ALLEN em 2003, ainda se aplicam aos conselhos de muitas companhias: pequena distinção entre funções de conselho e funções de diretoria (especialmente nas empresas familiares), presença insatisfatória de conselheiros independentes e profissionais, remuneração de conselheiros relegada a segundo plano e informalidade.


Dadas essas considerações, o que dizer sobre o futuro das nossas sociedades por ações? Iniciado na prática por imigrantes europeus, especialmente no início do século XX, o capitalismo nacional tem evoluído, com problemas, mas tem evoluído. A estabilização econômica alcançada nos últimos, sem dúvida, é uma conquista do Brasil, e as sociedades por ações nacionais são beneficiárias, em primeira mão, desse ambiente mais estável. Além disso, é mister lembrar a evolução das regras legais, especialmente da Lei das Sociedades Anônimas, e da regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários - CVM. Ponto de destaque tem sido a auto-regulação do mercado de capitais nacional, os Níveis Diferenciados de Governança Corporativa da BM&FBovespa - o Novo Mercado e os Níveis 1 e 2. Além desses avanços, outros também têm sido relevantes, entre os quais destacamos a introjeção crescente, pelas empresas, dos conceitos de ética e de sustentabilidade nas vertentes econômica, social e ambiental. Vale lembrar que a indesejável crise financeira global, no fundo, uma crise de governança, necessariamente tornará os legisladores, os regulamentadores e as empresas mais cuidadosas com seus riscos. Finalizando, a cultura, correspondente às regras do jogo informais de nossa sociedade, nunca foi estática, e a velocidade de suas mudanças tem aumentado.



MMB - Publicado na Revista RI

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