sábado, 20 de março de 2010

18 - Governança, mercado e capital humano: fazer diferença pode destruir valor?

Abril de 2009


As pessoas estão no epicentro da busca de sustentabilidade e de fortalecimento das empresas, dos mercados e das demais estruturas de governança da economia.


Consideremos o exemplo dos Estados Unidos, que se desenvolveram, em boa medida, em função do seu mercado de ações (constituído por pessoas), o qual captou as poupanças de milhares de cidadãos norte-americanos, direcionando-as para o crescimento de empresas (operadas por pessoas). O desenvolvimento mencionado teve pelo menos um contraponto: o capital de várias grandes empresas tornou-se diluído. Nesse contexto, parte dos administradores empresariais (pessoas) cometeu sérios abusos administrativos amplamente criticados pela sociedade (pessoas) e tais abusos foram o mote da emergência de um movimento pela governança corporativa capitaneado por investidores institucionais – líderes de grandes fundos de pensão e de investimentos (pessoas) - e encorpado pelo ativismo de um líder em especial, Robert A. Monks (pessoa). O movimento em questão difundiu-se dos EUA para o resto do mundo, incluindo o Brasil.


Monks é um personagem especial bem conhecido pelo mercado de capitais e pelas companhias abertas norte-americanas. Nascido na elite dos EUA, ele tem sido um dos grandes defensores dos acionistas não controladores ou minoritários naquele País, um dos seus maiores símbolos ou ícones. Tornou-se combatente duro da chamada ditadura dos administradores, em um ambiente de maior distribuição do controle acionário das companhias com ações listadas em Bolsa de Valores. Pouco organizados e instrumentados para enfrentar a ditadura dos administradores, os pequenos acionistas norte-americanos encontraram em Monks um defensor muito relevante de seus direitos e de sua voz e ele é alguém que fez grande diferença.


As pessoas que fazem diferença, no melhor sentido da expressão, existem e exercem benéfica influência sobre as demais; se assim não fosse, a quantidade de organizações eliminadas do ambiente econômico seria exponencialmente mais elevada, assim como exponencialmente mais elevada seria a fragilidade dos mercados, incluindo os mercados financeiros e de capitais. Entretanto, é mister reconhecer que esse ambiente também é habitado por pessoas que fazem diferença de maneira questionável, ou seja, criando potencial para destruir valor em uma perspectiva de prazo mais longo e para prejudicar investidores. Como assim?


Poderíamos pensar em muitos exemplos para ilustrar o ponto acima citado. Poderíamos mencionar, por exemplo, a crise financeira global iniciada nos EUA e tecer longas considerações sobre decisões equivocadas e francamente questionáveis, sob o prisma ético, tomadas em várias esferas do sistema capitalista, as quais ceifaram a oportunidade e a renda de muitas famílias. Consideremos aqui, entretanto, um exemplo mais singelo: o filme O diabo veste Prada, estrelado por Meryl Streep, o qual acreditamos que permitirá ilustrar o nosso pensamento.


A comédia (assim nos parece) em tela refere-se às dificuldades da jovem assistente da intratável editora-chefe de uma importante revista de moda em New York; tem Meryl Streep no papel da poderosa, invejada e temida editora-chefe Miranda Priestly (Merryl Streep) e, naturalmente, belos figurinos. Ao mesmo tempo, o filme inspira reflexões pertinentes sobre questões modernas que permeiam o governo e a administração mais ampla das pessoas nas empresas e demais instâncias da economia.


Um tema que salta sobre quem assiste o filme é assédio moral, em grandes linhas, um conjunto de pequenas condutas de desqualificação de um profissional pelo seu superior hierárquico. Miranda Priestly pode ser percebida como exemplo vívido desse tipo de patologia organizacional, em vários comportamentos: críticas ácidas, ainda que aparentemente polidas, sobre contribuições ao trabalho ou sobre o modo de vestir de subordinados; estabelecimento de tarefas difíceis, a realizar em prazos inexeqüíveis; desqualificação profissional das pessoas ao redor (todos são incompetentes), bem como exigências freqüentes e descabidas de extrapolação de funções e do horário de trabalho.


A editora-chefe, percebida como imprescindível ao negócio pelos dirigentes de sua empresa, em função de suas qualificações técnicas, conexões sociais e bons resultados econômicos, é democrática em relação aos subordinados: todos estão sujeitos às suas idiossincrasias ferinas, o que, de certa forma, se contrapõe à conduta de assediadores morais, que podem concentrar seu assédio sobre determinadas pessoas. Também é verdade que a editora se mostra humana em algumas passagens do filme, mas isso não altera seu modus operandi típico em relação às pessoas que coordena. A nosso ver, as Mirandas de distintos sexos que habitam o ambiente econômico em múltiplas instâncias podem ser altamente destrutivas para a economia e a sociedade e o seu exemplo está longe de seu exaustivo.


Motivação, desenvolvimento, assédio moral e muitos outros temas ligados à administração de pessoas podem ser enquadrados em uma visão mais abrangente de governança organizacional, que abarca a própria visão do ser humano pela organização. Qual é a ética em que a organização acredita? Quais são as grandes linhas da política de gestão de pessoas adotada? Em que medida a organização percebe o risco de perdas de valor econômico (ou, no mínimo, de não alcançar bons retornos) com a tolerância a comportamentos que podem inibir o talento e as contribuições individuais, notadamente em negócios em que a criatividade é crucial? Em O Diabo veste Prada, a aterrorizante Miranda Priestly parece um grande problema, mas os dirigentes de sua organização que não a percebem como problema podem constituir um problema ainda maior.


Neste artigo, que navega brevemente das realizações de Robert A. Monks às idiossincrasias da personagem de Meryl Streep no filme aqui comentado, explicitamos um ponto de vista singelo: fazer diferença pode destruir valor e prejudicar quem investe, se isso for feito sem respeito e cuidado com as pessoas. Óbvio, mas frequentemente, nada fácil de perceber, especialmente à luz dos resultados econômicos de curto prazo.


Parece razoável supor que o uso de sistemas de governança bem estruturados resultem na maior sustentabilidade dos negócios e das estruturas de governança do capitalismo em geral. Entretanto, se esses sistemas não contemplarem políticas de administração de pessoas razoáveis na teoria e na prática, assim como a presença de pessoas competentes, razoáveis e efetivamente preocupadas em respeitar as outras pessoas, a nós parece que o potencial de perda de valor econômico em algum ponto do futuro é considerável.



MMB - Publicado na Revista RI

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